Saiu de casa naquela manhã decidido a sumir. Queria, finalmente, buscar a felicidade perdida há tantos anos.
Os filhos criados, a esposa falecida há 2 anos, os netos indo para a faculdade, os amigos nem sabia mais por onde andavam.
Nada mais fazia sentido. Sentia há muito tempo que tinha mais passado do que futuro.
Na infância o que nos motiva são os sonhos para a vida adulta e os empurrões que os pais vão nos dando. Estude, se comporte, faça amigos, vá brincar. Depois, na adolescência, os desejos de liberdade e descobertas. Faça faculdade, arrume emprego, ganhe dinheiro, namore, perca a virgindade, fique noivo, conheça gente nova. Por fim, na vida adulta, as preocupações com a família nos fazem seguir, embora já sintamos o cansaço pela rotina. Trabalhe mais, compre uma casa, tenha filhos, pague um bom colégio para as crianças, troque o carro, conserte o portão que está rangendo, espere o filho chegar da festa, mantenha-se fiel e casado.
Já havia cumprido todas as etapas e, felizmente, com sucesso. Sabia que a esposa havia partido satisfeita com o marido e pai que ele sempre foi. Deu aos filhos a infância segura e a base para uma vida adulta feliz. Aposentou-se como um funcionário respeitado dentro da empresa, mesmo nunca tendo feito algo que realmente o orgulhasse naquele emprego burocrático e mecanicamente repetitivo. Mas nunca, em momento algum, reclamou de acordar às 6:00 am, mesmo no inverno, mesmo no verão, mesmo doente, mesmo infeliz. Se precisava fazer, que fosse feito. Era assim que se forçava a sair da cama todos os dias e era com a certeza de dever cumprido que ia dormir todas as noites, após ajudar os filhos com o dever de casa, lavar a louça do jantar e recolher o cachorro.
Tinha tudo planejado na cabeça há meses. Sairia para caminhar como todos os dias, logo após o café da manhã e, certificando-se de ter deixado o lixo na rua e as contas pagas, levaria apenas carteira e documentos e sumiria no mundo. Sem se despedir, sem explicar nada, sem pedir permissão aos filhos. Simplesmente deixaria de existir naquela vida para tentar existir em outra vida, uma nova vida com o pouco de vida que sabia que ainda tinha pela frente.
Caminhou alguns quarteirões, pensou em ir pela última vez à missa do bairro, mas que sentido havia nisso? Começar uma vida nova com um velho hábito? Não. Entrou na rua antes da igreja e seguiu mais alguns metros até perceber que o tempo estava fechando e ele não tinha um guarda-chuva. Dane-se, pensou, me molho e começo a nova vida assim, de forma inconsequente e imprevisível. Mas, com a idade já avançando, não seria muito inteligente arriscar-se na chuva e dar chances a uma pneumonia. A intenção era viver mais o pouco tempo restante, não encurtar mais o tempo que lhe restava da vida. Deu meia volta e pôs-se a pensar onde estaria o guarda-chuva ou a capa de chuva.
No caminho para casa foi pensando no grande absurdo que estava prestes a fazer. Considerou mais uma vez a possibilidade de arriscar-se na chuva que talvez nem chegasse a cair e, antes que pudesse concluir seu raciocínio, sentiu o primeiro pingo gelado molhar seu nariz.
Colocou a mão na barriga, como se pudesse agarrar ou conter o buraco que só fazia crescer dentro dele, respirou fundo com o peso de quem tenta dar o último suspiro debaixo de toneladas de escombros e, finalmente, assumiu-se um covarde.
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A foto que ilustra o post e me inspirou a escrever esse conto meio mal contado, é da Gabriela Romeiro (@quandocoisa), que fotografa e escreve lindamente.
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Trilha Sonora: Estou há dias tentando concluir esse conto (faltou tempo, faltou internet, faltou humor), então rolou muita música nos meus fones durante o processo todo. A última coisa que ouvi foi Hole ( ♥ ) - Malibu.