Quando eu era uma moça de baladas, eu costumava me arrumar lindamente e, em dias de mais inspiração, gostava de encarar um salto alto porque, né? 1,49m em certas situações não combinam muito com o resto da produção.
Aí eu dançava, dançava, dançava. Até quase amanhecer. Muitas vezes até realmente amanhecer. Eu e mais um monte de outras meninas que estavam de salto. Acontece que a maioria delas "arriava" no meio da noite, abria mão do salto e terminava a festa descalça mesmo, com os sapatos escondidos no cantinho da parede.
Eu nunca fiz isso. Se na hora de me arrumar eu resolvia que aquela era uma noite para salto alto, mesmo sabendo da dormência nos dedos dos pés que apareceriam no dia seguinte, eu colocava o salto e só tirava na hora de desmontar o mulherão.
Só que não é de salto alto que eu quero falar. É de desistir no meio do caminho, mesmo sabendo o que de bom pode acontecer se você não desistir. É de não desistir, porque você sabe que a insistência vai valer a pena mesmo que ela traga um pouco de dor e dormência nos dedos dos pés.
Eu fiz escolhas que quase me custaram pessoas valiosas. Eu senti a dor dos dedos dormentes, mas quis levar adiante a escolha de viver um pouco mais no alto.
Eu fiz valer a pena a dor nos pés, eu encontrei outras pessoas que optaram por usar os mesmos sapatos doloridos em nome de desejos que significavam muito pra nós e só pra nós. Quem estava de fora não entenderia, por mais que tentássemos explicar o que significava. Essas pessoas me mostraram que não doía só nos meus pés. Não era um capricho meu, não era uma coisa absurda escolher a dor em troca de um tempo nas alturas. Fazia todo o sentido dentro do contexto da minha vida.
Mas aí amanhece e é hora de voltar pra casa.
Ainda tem aquela vontade que não quer sumir, te dizendo para ficar mais um pouco de salto, "você fica tão bem assim". Aquela intuição de que, se descer do salto, aí é que vai doer de verdade, afinal... aperta, mas com o tempo você acostuma e quase nem sente mais nada.
Tem também aquela coisa engraçada que minha mãe me disse uma vez sobre trabalhar de sapato apertado "doía demais, mas eu gostava. Porque o gostoso era o alívio de ficar descalça quando chegava em casa".
E juntando todos os detalhes, entendi que não estou desistindo do salto alto. Só está amanhecendo e daqui a pouco é hora de chegar em casa, tirar os sapatos e sentir o alívio que me diz "bem vinda de volta ao seu lugar".
***
Trilha Sonora: Eu poderia, mas não quero agora.
terça-feira, 23 de novembro de 2010
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4 comentários:
Oi!
Adorei o texto (como sempre, aliás!).
E nada é melhor do que a sensação de alívio depois que percebemos que a decisão que tomamos é a acertada.
=)
E quem precisa entender? Bom mesmo é não entender, deixar a cargo do tempo essa coisa de compreender a questão das necessidades. Tem dias que é bom ouvir música e tem dias que ouvir e dançar é o mais legal. Outras festas virão, você vai ver.
Sabe o que que cê me lembrou agora?
Daquele trecho em que Brás Cubas, tira a bota apertada e escalda os pés dizendo que se não fosse a bota apertada ele não teria aquele prazer!
"Fui descalçar as botas, que estavam apertadas.... Então considerei que as botas apertadas são uma das maiores venturas da Terra, porque, fazendo doer os pés, dão azo ao prazer de as descalçar. Mortifica os pés, desgraçado, desmortifica-os depois, e aí tens a felicidade barata, ao sabor dos sapateiros e de Epicuro."
Depois de mais de um ano sem aparecer aqui, resolvi dar uma espiada: teu blog continua ótimo, vou tentar lembrar de vir aqui mais vezes!
Eu sempre enxerguei sapatos como metáforas pra vários aspectos da vida, mas ainda não tinha pensado nesse.
Ponto de vista interessante.
A propósito, meus calcanhares estão arrebentados essa semana. Mas vale a pena.
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